de José Vultos Sequeira,
e Lá Longe o Fogo,
de João Pedro Messeder
A arte do testemunho <br>no discurso poético
Dois livros de poesia de extracção recente, dois livros que, embora diversos nos seus íntimos discursos, nos seus modos de abordagem dos fenómenos poéticos e da linguagem, na unidade frásica que os constituem, confluem em análogos propósitos, tais sejam os da inquieta abordagem do real, esse âmago das vivências subordinadas, a sagacidade do olhar e a complexidade dialéctica que essas mesmas incursões implicam, o compromisso humano que esses específicos e variáveis territórios narrativos relevam e explicitam.
1. A poesia de José Vultos Sequeira constrói-se (a poesia é sempre um projecto em permanente transfiguração) em torno de um elaborado trabalho da linguagem, tarefa que o autor subordina à sua vivência, aos afectos e aos territórios ideológicos que o formam, cuja igualmente se alicerça, nos seus referentes estruturantes, na inquirição da realidade social e numa peculiar experiência que o poeta adquiriu nos vários ofícios em que desenvolveu a sua actividade profissional. Neste contexto, o refinamento desse discurso poético encontra-se expresso, com singular e impressiva desenvoltura, no livro Homem da Fábrica.
Neste livro A Navegação do Albatroz, Vultos Sequeira abandona os significantes ideológicos mais imediatos, inscritos em Corpo de Compromisso e Andaimes do Mundo, nos quais essa consciência indignada estava mais presente, investindo agora em um mais elaborado processo estilístico, no qual é já possível detectarmos a incidência de campos semânticos diversos, e inovadores, fugindo o autor à matriz mais redutora dos seus livros transactos, sem contudo se ausentar do compromisso que esses livros, e este, claramente, estabelecem com a realidade e o modo de expressar os gritos de revolta e a denúncia: quando na rua passares pelas pessoas/quando no metro te sentares junto às pessoas/quando seja onde for encontrares pessoas/escuta a sua fala muda/essa viagem/esse escutar/escutar e olhar/e escutar/como se lamentam/escutar como arrastam consigo tanta lástima/vê/como nos seus rostos/os tiques da frustração lhes trai o sorriso/mas tu olha/e escuta essa fala muda (p.61). Há aqui, neste modo de expositiva inquirição, de olhar o outro, um alerta contra a indiferença, para o mundo circundante, a substância que dele o poeta percepciona, o íntimo, cósmico desejo de rasgar o silêncio, os muros de circunstância que cavamos entre nós e os outros, arremesso de ossos e de sombra que não serve para libertar o fogo – silêncio e medo que apenas contribuem para a nossa progressiva desumanização. E Vultos Sequeira precisava, para nos dizer isto, para nos colocar perante o que vemos sem ver, de um modo outro de seguir o rastro das palavras, navegando sobre elas, nesse jogo de diluição do discurso poético, de um mais intimo rigor, de uma fala mais elaborada que vai às ressonâncias mais áridas da palavra para gerar em seguida, no discurso poético, o fluxo, o magma da sua intensidade.
a terra o chão a humidade/do chão/alimentando o ar/e sustendo o peso/do que está a crescer// e os olhos pedem/porque ninguém nasceu para a solidão/e as palavras não são propriedade/dão-se/são fiéis e amorosas// fábrica colectiva/vísceras de um corpo colectivo/que no fogo/e com o sangue/as amassa// elas cantam/nas bocas (p.21).
Palavras que são vinagre e ácido, esplendor e leito, ou prodigiosa claridade do mundo, como afirma Manuel Gusmão no prefácio.
2. Conhecido como autor de livros para a infância e juventude, com obra de referência nesse âmbito, João Pedro Mésseder é, igualmente, um poeta de amplos recursos estilísticos, com uma escrita original e que se quer actuante e incisiva sobre as superfícies do real e as grandes questões da contemporaneidade.
Em Lá Longe o Fogo, o autor reflecte com amarga lucidez sobre os grandes conflitos bélicos que atravessaram o século XX e os que hoje, nos subterrâneos cínicos das guerras não declaradas, assolam o nosso tempo. Dos frios cemitérios das trincheiras, na Flandres, às bombas assassinas sobre Hiroxima e Nagasaki; da guerra civil em Espanha aos horrores de Cabul, Gaza ou Timor, o poeta trava um combate contra o silêncio e a indiferença, busca a percepção de uma consciência colectiva que se erga e denuncie a barbárie, o conformismo, a sordidez.
Mésseder, poeta atento às derivas do seu tempo, sabe que não pode desviar o olhar, passar incólume sobre as feridas que gangrenam o nosso tempo, mesmo quando esse tempo e essas feridas são já longínquos rumores que apenas a memória histórica e os livros registam, ou as estátuas, as milhares de lápides no cemitérios perpetuam como sinais perenes da vergonha. O poeta nega-se a assistir à derrocada de um mundo em desagregação, sujeito ao caos que as guerras, mesmo as que se urdem em Wall Street, ou nas suites de luxo de Bilderberg, estabelecem como forma visceral, orgânica, do capitalismo; nega-se à normalidade das Searas de Guerra, à fragmentação do humano, à lógica rapace dos abutres: Gaza, Ucrânia, Iraque, Síria/searas de guerra em agosto/oh que ceifa interminável (p.41). E, numa monódia dorida, que lembra uma cantilena popular de combate, o poeta define o seu modo de ser livre, poeta aprendiz do nojo e da infâmia, mas também da resistência, da luta contra a opressão e o medo, afirmando caminhos de esperança e de lonjura sobre o sangue derramado no chão da Palestina: - Chovem tiros, caem bombas,/cai o míssil do avião!/- Aprende, meu caro poeta,/de Ariel Sharon a lição:// Gaza rima com Sabra,/Cisjordânia com Chatila.// A rima pode ser coxa,/mas coxa não é a lição:/com oito letras de sangue/se escreve a palavra opressão.// - A funda já está vazia,/a fisga a pedra soltou.// O verso pode ser coxo/mas já conhece a verdade:/com nove letras de pedra/se conquista a liberdade.
João Pedro Mésseder arrisca enfrentar a noite e acender o escuro, com a chama das palavras urgentes, denunciando esse «monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta» (Padre António Vieira, citado por Mésseder), sabendo que a ideologia na arte literária (e na poesia que se quer interventiva, assertivo reflexo da limpidez inicial da vida), como forma justa e imanente do humano que nos habita, é algo que deve produzir-se dialecticamente entre quem escreve e a realidade que essa escrita inquire e reflecte.
Este livro é a projecção do que nos dói, um acto poético que assume o horror como forma de combate, libelo acusatório contra a torpeza e a impunidade, como se a morte de milhares de seres humanos fosse apenas um número, danos colaterais e não existissem culpados. Há nesta postura cívica o sentido camusiano da não inocência.
Lá Longe o Fogo, de João Pedro Mésseder, não é apenas um grande livro, ele alerta-nos para a necessidade de agirmos sobre o nosso tempo, sobre a cupidez que o fragmenta e transfigura: a arte de transformar as palavras em testemunho de um tempo e do estupor que o não deixa crescer nem respirar. Sabendo, no entanto, que mesmo às cidades transformadas em cinza, pó de ossos e fuligem, As andorinhas/continuam a voltar.
Uma palavra mais para as ilustrações de José Santa-Bárbara que ampliam e interpenetram, em turbilhão de signos, o sentido dos textos.
A Navegação do Albatroz, de José Vultos Sequeira – Edição Página a Página
Lá Longe o Fogo, de João Pedro Mésseder – Edição Página a Página